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Nesta escola há um mentiroso! Ou o Padre ou o Professor

Cresci numa família tradicional e católica. Quando entrei na escola primária comecei e frequentar a igreja, ou seja todos os domingos ia à missa, com o missal, terça e o véu, que eu adorava.

Era branco e de renda. A missa era em latim. Claro que ninguém percebia nada, mas aprendíamos umas frases, que na devida altura tínhamos que dizer em uníssono.

Foto: Notícias Gospel
Corria os anos 50, adorava a catequese, essencialmente os lenços da catequista, com as respectivas pregadeiras. Os lencinhos nunca saíam do sítio, mesmo que ela virasse a cabeça para qualquer lado. Enquanto ela falava eu pensava: quando for grande também quero usar uns lenços assim. E com os meus 14 anos comprei no mercado da aldeia próxima um lenço. Só que azar o meu, ou falta de jeito, volta e meia lá estava este adereço no chão. Pensei: isto é falta da pregadeira. Pedi uma à minha mãe, coloquei-a… mas o malvado lenço estava sempre torto.

Bem, passemos à minha passagem pelo catolicismo. A catequese tudo bem, a missa também, pois sempre saía de casa e vestia a minha fatiota domingueira, com sapatos impecavelmente engraxados, o pior eram as confissões. Ora com a idade que tinha não vislumbrava nenhuns pecados, mas como tinha que me confessar inventava uns pequenitos. E para me penitenciar lá rezava uns pais-nossos e umas avé marias.

Fiz tudo, como sói dizer-se “conforme o figurino”: a 1ª comunhão, a comunhão solene e até fui crismada. Lá em casa só eu ia à missa. A minha avó, muito católica, fazia as suas rezas em casa, e o meu avô, quando eu saía, a frase era sempre a mesma: Filha reza lá um pai-nosso pelo avô.

Quando comecei a frequentar a escola comercial, numa vila (hoje cidade) mais próxima, aí a coisa começou a mudar de figura. Comecei a olhar para os rapazes com mais atenção e no que diz respeito a confissões começaram a escassear. Como é que eu ia dizer ao padre, conhecido da família, que andava a apreciar o sexo oposto? Pensando ser pecados muito pesados, que não havia ave-marias nem pais-nossos que chegassem, comecei mesmo a desistir das ditas confissões. Felizmente nunca ninguém me questionou, ou talvez nem dessem por isso.

Mas depois deste pequeno preâmbulo, vamos ao que interessa.

Nessa altura só haviam na escola 2 turmas de 1º ano e 2º. Na minha turma havia um rapaz, de famílias de classe baixa (aliás só haviam jovens de classe baixa e média baixa) de uma aldeia não muito próxima da minha, pois eu não o conhecia, excessivamente gordo, mas apesar de o apelidarmos pelo “gordo” mas em surdina (julgo que ele nunca soube) não o marginalizávamos. Mas, por incrível que pareça, ele auto marginalizou-se. Não falava com os colegas, apesar de tentarmos falar com ele, e refugiava-se nos estudos. Foi sempre o melhor aluno da turma. Os professores não lhe atribuíam 21 valores, porque não podiam.

Um dia alguns colegas apostaram comigo em como eu não conseguia “roubar-lhe” o ponto (era assim que se chamavam os, agora, testes). Era de matemática, uma disciplina que era o calcanhar de Aquiles de quase todos os alunos, e que ele concluía num quarto de hora. E consegui mesmo. O ponto correu a sala toda, mas na altura da entrega lá estava em cima da mesa dele. Até hoje me arrependo, pois o rapaz suou e estava branco como a cal.

Um dia tivemos uma aula de ciências da natureza, um professor simpatiquíssimo e que sabia muito bem chegar os conhecimentos aos alunos. Nesse dia foi explicado a origem do homem. Lá ouvimos com muita atenção os primatas, e toda a evolução até chegarmos aos homens actuais.

Na segunda aula: religião e moral. Era um padre muito conhecido na vila e muito conceituado.

E aqui começa o busílis da questão: O padre Hélder começa igualmente pela origem do homem, mas desta vez com o Adão e Eva, a respectiva serpente e a maçã.

A certa altura o Carlos (nome fictício do nosso gordo) que raras vezes abria a boca, a não ser para responder a perguntas dos professores nas aulas, levanta a mão e pediu se podia falar.

A sala ficou em silêncio, nem uma mosca se ouvia, e o padre admiradíssimo, pois já o conhecia bem. Podes falar rapaz, disse em tom amistoso. E o rapaz efectivamente lá disse. Oh Sr. padre sabe nesta escola há um mentiroso! Todos nós baixámos as cabeças envergonhados. Chamar mentiroso a um professor é obra.

Continuou: sabe, viemos agora da aula do Stor Avelino e ele disse que descendíamos dos macacos. Agora o Sr. padre fala do Adão e da Eva, afinal quem diz a verdade?

O Sr. ficou sem cor e claro com dificuldades em dar a resposta certa. Lá titubeou, falou, falou, deixando-nos ainda mais confusos a todos. Só sei que a aula de religião e moral acabou mais cedo, mas não antes do nosso colega Carlos dizer: sabe Sr. padre, gostei de o ouvir, mas não fiquei convencido e o Sr. não respondeu à minha pergunta.

A partir dessa altura, as nossas cabecitas de pré adolescentes ficaram a pensar, e a partir daí o Carlos passou a ser o nosso ídolo.

Acabámos o curso comercial e nunca mais soube dele. Um dia mais tarde uma colega disse-me que ele frequentava a universidade em económico-financeiro.

Há uns anos, reconheci-o pela televisão: era secretário de estado de um ministério qualquer, não me recordo qual.

Até hoje me lembro daquela figura, sempre amedrontada, mas com uma força de vontade do tamanho do mundo. Lembro-me que na aldeia dele não havia ainda luz eléctrica e estudava à luz de um candeeiro a petróleo.

Contei várias vezes esta história (verídica) aos meus filhos e mais tarde aos meus netos.

Tudo se consegue na vida, é preciso é querer.

Escrito por Maria Cruz
Nesta escola há um mentiroso! Ou o Padre ou o Professor Nesta escola há um mentiroso! Ou o Padre ou o Professor Reviewed by Emotiva Memória on 19:23:00 Rating: 5
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