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Passei 10 dias e 10 noites acordada e praticamente sem comer

Esta será talvez a parte mais dolorosa e angustiante de toda a minha vida.

Depois de uma intensa vida política anti-fascista com todos os movimentos de contestação estudantis, operários e intelectuais, dos quais fiz parte durante cinc0 anos, antes e após 25 de Abril, deu-se finalmente o dia porque tanto esperávamos. Sabíamos que viria, fosse em Janeiro, Março ou qualquer outro mês, pois o país já não aguentava nem a guerra colonial (em cujas colónias morreram tantos dos nossos jovens e outros ficaram estropiados) nem as prisões, nem a repressão que o povo tinha e finalmente festejámos a liberdade e democracia.
Foto: Insónias
Mais tarde conto toda esta parte de luta.

No dia 1º de Maio de 1974, fomos a um comício no campo pequeno, e as minhas 3 filhas (de 4 anos, 37 e 21 meses) ficaram ao cuidado da avó paterna e da tia. Era um dia de muito sol e alegria.

Na noite de 1 para 2 de Maio a minha filha mais nova vomitou toda a noite. Mediquei-a com medicamentos que tinha em casa, pensando ter sido alguma coisa que tivesse comido, pois era uma bebé que se alimentava muito bem. Cansada de ter estado acordada toda a noite, cerca das 7 horas adormeci, pois ela tinha parado de vomitar. A empregada chegava às 8,30 h. De rompão entrou-me no quarto, dizendo que a minha filha não se mexia. Levantei-me sobressaltada, e verifiquei que estava em coma. Corro com ela para o médico mais próximo que mandou dar-lhe uma injecção, mas não diagnosticou a doença. Cerca de 10 minutos depois mandei chamar a ambulância e telefonei para um médico amigo que dava consultas a cerca de 9 km. A ambulância era velhíssima e não havia na época motorista.

Consegui arranjar um e passei pelo consultório do médico amigo. Quando chegou á ambulância, observou a minha filha e só o ouvi dizer em voz baixa (mas que eu entendi muito bem) ao motorista que fosse o mais rápido possível para a Estefânia, pois ia telefonar a uns médicos amigos que estavam de serviço para lá terem tudo preparado. Ou seja a minha bebé tinha contraído meningite meningocócica. Fiquei naquele corredor horrível, com o meu pai e a minha cunhada que me tinham acompanhado, quando passados uns dez minutos, aproximou-se de mim uma médica “muito sensível e humana” dizendo: então a senhora traz uma criança praticamente morta. Só me lembro de encostar a cabeça àquela parede fria, e pensei “ a minha bebé não está morta. E não consegui verter uma lágrima.

Passado meia hora saiu uma maca com muita urgência, transportando a minha menina para o Curry Cabral, pois era uma doença infecto contagiosa. A minha cunhada e o meu pai regressaram a casa e eu permaneci à porta do hospital durante umas longas 5 horas, até o meu marido chegar, pois trabalhava nas OGMA e o recado que lhe tinham dado é que tinha uma filha doente. Ou seja pensou ser uma simples doença infantil.

Regressei a casa, pois comunicaram-me que ali não podia ficar.

Quando cheguei a casa já estava a minha outra filha a vomitar. Felizmente a mais velha não tinha ficado em casa nessa noite. Sem descanso algum, volto novamente para o hospital com a irmã. É-lhe feita uma punção e não acusa nada, mas aí teimo e como o padrinho era médico foi lá e…mais uma internada, mas consciente. Pedi para me arranjarem um quarto, pois não deixava duas filhas numa enfermaria, pois tinha visto coisas horrorosas, inclusive um bebé já sem o soro e com a cabecita fora da cama e no corredor um menino de uns 4 anitos talvez, numa maca no chão, já cadáver. Lá me arranjaram um quarto, com uma cama de bebé, para a mais pequena, outra camita para a irmã e um divã para mim, que nunca foi utilizado.

Passei dez dias e dez noites acordada entre as duas camas e praticamente sem comer. Lavava-me de manhã e trocava de roupa. Ao 4º dia a mais pequenina saiu do coma. Seriam dez da noite comecei a notar que a bebé estava inchada e com manchas vermelhas. Chamei de imediato a enfermeira de serviço e notei uma correria de médicos. Conclusão: a minha filha era alérgica á penicilina (eu desconhecia pois tinha sido sempre saudável) e no hospital não havia anti alérgico (apercebi-me eu). Entretanto lá veio de outro sítio.

Quando as minhas filhas tiveram alta, o director do hospital, veio despedir-se de mim. Ainda tenho a imagem perfeita daquele homem alto, de bata branca, ar jovial, perguntar-me: a senhora acredita em Deus? Respondi: sou agnóstica Dr. Ele ripostou: Olhe eu sou ateu. Mas no caso da sua filha mais nova foi praticamente um milagre. Acho que devia ir a pé a Fátima, ou a outro sítio que queira.

Aquelas palavras ficaram-me na memória e tentei ir mesmo a pé a Fátima. Infelizmente fiquei por fragas, pois não aguentei mais. Talvez um dia faça o resto, pois nunca gostei de deixar as coisas por acabar. E não vai ser esta. Durante 3 longos anos não parei de idas a toda a “raça” de especialistas. Felizmente as minhas filhas não ficaram afectadas.

Tive passados 6 meses a minha 1ª depressão, que nunca tive tempo de curar. Tinha vencido (eu e elas) aquela dolorosa batalha.

No entanto fiquei marcada e de vez em quanto sonho com isto e acordo assustada.

Não mais me vou esquecer e de vez em quando tenho sessões de terapia, que na verdade me têm ajudado bastante.

Escrito por Maria Cruz
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